Intrépidos Produtores: Juliana Aquino, da Baianí

A história da Baianí daria um livro, um romance de ares fantásticos. É uma história de resgate de uma fazenda de família que culmina em uma barra de chocolate premiada. Tudo começou com o amêndoa do cacau. Juliana e Tuta Aquino, que são músicos, entraram numa jornada de descoberta até chegar em amêndoas valiosas. Uma parte desse tesouro está na Cacaueiro Baianí, a edição especial da nossa pastry stout com cacau que leva nibs de cacau da fazenda deles, no Vale do Putumuju. Quando toma um gole dessa cerveja, vem a história deles junto no copo. Além de sabor intenso de chocolate, claro.

Neste ano decidimos começar a trocar ideias com produtores intrépidos, gente que é apaixonada pelo que faz e entende que o único jeito de produzir é com foco total no produto. 

Explicamos essa ideia aqui neste post, em suma: existe uma movimentação de valorização do produto acontecendo. Muita gente está descobrindo que pode comprar, direto do produtor, produtos melhores. Mas muitas vezes é difícil acessar quem é quem. Quem está fazendo um produto legal e buscando uma maneira de se conectar a você e quem está fazendo o mesmo de sempre. 

É aí que entra a parte gostosa da história. A cada produto incrível que a gente descobre, vem a reboque uma pessoa intrigante. E a Juliana é uma dessas pessoas. Não dá vontade de parar de conversar com ela. 

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A gente já ouviu falar que a história da Baianí é incrível.

Juliana: É uma história de resgate de infância, tanto pra mim quanto pro Tuta, meu marido. Eu e ele crescemos em fazenda de cacau. Meu pai comprou a fazenda dele em 1973 e viveu a época áurea do cacau, até a vassoura de bruxa. Ele era um agricultor apaixonado. Espero que de algum lugar esteja vendo o que fizemos.

Tem o trauma da vassoura de bruxa na história!

Juliana: Sim. A praga acabou com tudo. O mais triste é que se perdeu uma geração inteira de trabalhadores de cacau. Então além de enfrentar a vassoura de bruxa, a gente tem que enfrentar a dificuldade cultural de uma geração que não conhece o trabalho com o cacau. 

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Agora, vocês são músicos. Como foram parar na roça de cacau?

Juliana: Pois é, eu já tava de saco cheio de ficar pedindo pra cantar. Resolvi ir fazer gastronomia e comecei a visitar a fazenda. Tinha passado uma infância tão feliz lá e agora via aquilo abandonado… Aquilo foi me deixando inquieta. O cara que trabalhava na fazenda ia pegar coco fresco pra me dar água de coco. Eu ia na roça pegar cacau. Aquilo começou a chamar. O Tuta falava: "Para de ir, você volta de lá deprimida". Mas eu dizia: "vamos lá, vamos pra você ver". Aí ele começou a ir, começou a tomar água de coco… Então conseguimos ganhar um processo contra a dívida da fazenda, que foi uma dívida para combater a vassoura. O projeto era falho e a fazenda ficou endividada. Revertemos isso e começamos a mexer. Nessa época minha mãe estava doente e o primeiro administrador que meu pai contratou, o Veridiano, começou a ir visitar minha mãe. Ele falava: olha, se vocês quiserem que eu volte, eu volto. Em 2013 a gente falou: Veridiano, você quer mesmo voltar? Ele pegou as malas e as cuias e foi para lá!

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Nessa altura a ideia era fazer…

Juliana: Cacau. Nosso plano era vender a amêndoa. Fazer chocolate não estava nos planos. Mesmo porque não era tinha uma tradição brasileira ainda. A gente ia investir na amêndoa para exportação. Aí a gente começou a pesquisar e conhecemos o movimento  Bean to Bar (produção de chocolate da amêndoa até a barra, com controle sobre todas as etapas, sem terceirizar por exemplo a torra ou o processamento do cacau), que era forte nos Estados Unidos. O Tuta, que é cidadão americano, foi pra lá, com a ideia de abrir canais de exportação. Ele pegou a pastinha, panfletos, umas amostras de nibs de cacau… E aí ele conheceu o Greg d'Alessandro, que é sócio da Dandelion e é também quem escolhe os cacaus de origem que eles usam. Greg olhou pro Tuta e falou: não tenho nenhuma origem brasileira. Você vai ser nossa origem brasileira. É cada história! 

Greg foi o cara que deu dois grandes toques que mudaram nossa vida. 1. Contratar um consultor de pós-colheita de cacau. 2. Fazer chocolate.

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O consultor é fundamental para chegar a amêndoas especiais. O cara cobra US$ 1 mil por dia. A partir do momento que ele sai da casa dele… no Havaí! Foram três dias de viagem pra ele chegar na fazenda. Mas ele transformou nossa amêndoa. E a ideia de fazer o chocolate é que assim você mesmo testa a evolução da qualidade da amêndoa. Aí, meu amigo, a primeira vez que eu joguei um chocolate na mesa pra temperar, sabe? Aquela movimentação das espátulas, meu Deus! Aquilo é uma mágica… não dá pra descrever. É emocionante. 

A gente foi reconstruindo a fazenda, eu fui fazendo chocolate e em 2018 lançamos a barra 70% e a barra com laranja, mandamos para um prêmio em Londres e ganhamos prata e bronze. Aí foi a mola que impulsionou. Hoje tenho clareza de que não quero uma gigante, quero uma marca que venda uma quantidade definida por mês. Não quero perder qualidade. Isso é o meu norte.

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Duas coisas interessantes: tanto no café quanto no chocolate tem esse desafio do pós-colheita. Não adianta você ter um produto de qualidade plantado, você pode perder tudo no pós-colheita. Tem a ver com cerveja: não adianta ter uma p*t@ cerveja no tanque. Se você pasteuriza, distribui de qualquer jeito, perdeu tudo. É um trabalho de proteger o produto. A outra coisa que tem muito a ver é não ter o conhecimento aqui no Brasil. Você ter de trazer alguém de fora. A gente fica olhando pra fora pra conseguir valoriza o nosso produto mas esperando o momento de parar de olhar pra fora, porque afinal de contas quem tem o produto é a gente. Parece que é uma jornada brasileira: a gente tem os ingredientes, mas não valoriza, até rolar uma descoberta, uma redescoberta. 

Juliana: É muito legal esse movimento. Do chocolate, da cerveja, do café. Isso vai trazer pro Brasil uma valorização do que é nosso que nunca existiu. O Brasil é celeiro de todos esses produtos. Sou presidente da associação Bean to Bar Brasil. Ontem mesmo estávamos falando de maquinário. É impressionante pensar que os engenheiros têm tudo isso na mão e a gente só encontra máquina boa pra processar chocolate lá fora. Aqui, quando dá problema na máquina, o cara diz que é você que está usando errado. Aí você vai na empresa e o cara não tem nem um quilo de chocolate dentro da máquina. Eles fazem a máquina na teoria da mecânica. A melhor marca italiana faz parcerias com chocolateiros do mundo inteiro: em cada showroom tem um chocolateiro que funciona no mesmo galpão. Aí as máquinas estão sempre cheias de cacau, chocolate, tudo rodando. E com isso o cara já está ali vendo quais são os problemas, onde dá pra melhorar. Existe um trabalho de aproximar o pessoal que faz maquinário, fazer parcerias para pensar como desenvolver melhores equipamentos nacionais. Porque é isso: a gente tem o cacau, a gente tem o movimento do chocolate muito forte.  A gente tem contato muito próximo com o produtor de cacau. A gente tá aqui fazendo o chocolate e já avisa: ô! veio adstringente seu cacau, o que houve? Aconteceu alguma coisa na safra? Será que dá pra acertar alguma coisa na fermentação? É um constante diálogo que faz que o cacau vá se aperfeiçoando muito. Na minha visão, daqui a alguns anos a gente vai estar nivelado com os nomes da Bélgica e da Suíça em chocolate bean to bar. É um potencial gigante. E a gente vai trazer tudo pra cima: os queijos, os azeites, as cervejas, o café, o chocolate. Eu vou morrer velhinha muito feliz de ter participado dessa revolução.

É isso! É esse ânimo de ver que tem tanta coisa pra fazer! Sempre falo que daqui a 30 anos a gente vai estar bebendo uma cerveja totalmente diferente da que a gente bebe hoje. Não sei como ela vai ser, mas a gente tá na linha de frente para descobrir. É uma empolgação. E acho importante contar isso para o cliente. Conectar o cliente com esse entusiasmo que existe por trás da busca do produto que ele está consumindo. Porque ele vai querer participar dessa revolução também. Daqui a 30 anos esse bonde passou, a gente tem a oportunidade de viver isso agora. E como você olha para o começo e para agora?

Juliana: Eu olho pra trás todos os dias. Sempre liga aqui gente que está começando e quer ajuda. Acho que tem uma fama de  "liga pra Juliana porque ela fala". Então todos dias eu lembro dos desafios que a gente viveu porque tem sempre essa galerinha passando pela mesma coisa. E quanta coisa a gente aprende com a experiência! Por exemplo, a arrumação dos cristais. Aquela coisa de temperar o chocolate, aquela movimentação com as espátulas, a gente faz aquilo para arrumar os cristais de gordura e você ter uma barra homogênea e brilhante. Existem seis arrumações de cristais, mas a gente só quer uma, a beta 5. Eu tava explicando isso pra uma pessoa e ela perguntou: e como você sabe tudo isso? Você tá fazendo pós? E eu respondi: pós, minha amiga? Venha aqui pra fábrica, em seis meses você tá com a pós, ó, resolvida! Eu faço isso todos os dias, e todos os dias você aprende e melhora. Com isso a gente consegue encurtar também o caminho dessa galerinha que vai entrando agora. Assim eles ganham tempo e podem trazer coisas novas em vez de ficar quebrando a cara com as coisas que a gente já quebrou a cara. E aí depois a gente também pega com eles essas coisas novas que eles descobrem. A competição só é legal se todos avançam juntos. Divido o conhecimento dos erros do começo com muito prazer porque são informações que são bem aproveitadas. E o movimento caminha junto. 

Na cerveja tem uma coisa importante de separar quem é artesanal de verdade de quem é de mentirinha. Quem tá bebendo não sabe. No caso da cerveja, todo mundo ganha medalha em competição, as marcas gigantes compram artesanal gringa e instalam no largo da batata e chamam de "a cerveja de Pinheiros".... E a gente fica tão focado em desenvolver o melhor produto que acaba não conseguindo comunicar essa diferença. Tem isso no mundo do chocolate bean to bar também? 

Juliana: Tem. A Dengo, que é da associação Bean to Bar Brasil, abriu  uma loja em Ilhéus em que vende, além dos chocolates próprios, as barras dos associados da Bean to Bar Brasil. Pois outros produtores da região foram lá bater na porta e perguntar porque não podiam vender os chocolates deles ali também. A Dengo respondeu: só vendemos chocolate dos associados. Por incrível que pareça, tem marca que se diz bean to bar mas terceiriza parte do processo, como a torra. A torra é o coração do chocolate! Você pode comprar um cacau  maravilhoso e estragar na torra. O cara entrega o cacau dele na fábrica, a fábrica faz uma torra padrão, processa o chocolate, embala e entrega pronto. Aí o cara diz que tem uma marca bean to bar? 

Queria fazer outro contraponto. Quando um cara começa grande, no mundo da cerveja, chega um ponto em que ele para de pensar em produto e começa a pensar em conta para pagar. Aí acabou. Tem uma beleza nessa história que é: no fundo, não é dinheiro. É energia. Você vai colocar energia onde? Eu coloco no produto. Conta um pouco do chocolate, é assim também?

Juliana: Olha, a Dengo tem um caminhão de dinheiro e tem também o mesmo amor. Descobri que, quando montaram a primeira fábrica, eles tiveram o mesmo descascador, uma engenhoca, que a gente teve até o ano passado. Então eles passam pelo mesmo processo de aprendizado. Agora, a alma do movimento Bean to Bar é ser pequeno, porque a ideia é controlar o cacau. No entanto, gosto de citar a Dandelion como exemplo de como dá para crescer e manter o conceito. Eles têm um chocolate maker para cada lote de amêndoa que chega lá. Para cada origem, eles têm dois produtos: uma barra 70% e uma 100%. É relativamente simples. E o chocolate maker assina a barra. Agora, se você tem uma pessoa só para cuidar disso e compra de produtores diferentes, não tem como a pessoa sentar e fazer uma análise individual de cada lote para pensar em cada torra, em cada processo. E aí a qualidade não é a mesma. Por isso a sacada da Dandelion é genial, é uma saída para essa questão. 

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A pandemia impulsionou a descoberta das cervejas de qualidade. Porque o cara em casa não vai querer tomar qualquer cerveja. A desaceleração do mundo ajudou a valorizar o produto. O cara não vai comprar o que tromba no caminho, ele vai escolher coisas mais legais. Com o chocolate houve essa descoberta também?

Juliana: Muito. Chocolate é indulgência, né? E tem também uma descoberta da imprensa, entendendo e comunicando o que é Bean to Bar. Estamos acompanhando essa movimentação. Porque bate numa confusão com sustentabilidade. Vou dar um exemplo: tem uma marca chamada Danke, que é daquele chocolate Neugebauer, que coloca na embalagem: chocolate sustentável. Ele compra de origem, valoriza o cacau, tem o discurso de sustentabilidade, mas não é bean to bar. Isso confunde o consumidor, como a Nespresso confundiu com o café. Mas a associação existe para isso e uma parte importante do nosso trabalho é esclarecer. Todo mundo tem muito prazer em divulgar, ensinar e falar sobre o movimento bean to bar. Todo produtor é um canal aberto de conhecimento. É muito legal entrar em contato mais direto com o produtor, uma coisa que só é possível com escalas menores. A descoberta é muito mais gostosa.

Daniel BekeiermanComentário