Intrépidos Produtores : Boram da Um Coffee Co.

Se você já provou a Grão ou a Coffee Times sabe que o encontro da TRILHA com a Um Coffee Co rende. Nossa linha de Coffee IPAs é uma ilustração sensorial do que acontece quando reunimos nossas cervejas e os cafés deles: tem surpresa, tem a felicidade da descoberta de algo novo, tem a certeza de estar diante de um produto muito especial.

Por isso, decidimos começar nossa rodada de conversa com produtores intrépidos com o Boram. Explicamos essa idéia aqui neste post, em suma: existe uma movimentação de valorização do produto acontecendo. Muita gente está descobrindo que pode comprar, direto do produtor, produtos melhores. Mas muitas vezes é difícil acessar quem é quem. Quem está fazendo um produto legal e buscando uma maneira de se conectar a você e quem está fazendo o mesmo de sempre, só que mais moderninho. 

É aí que entra a parte gostosa da história. A cada produto incrível que a gente descobre, vem a reboque uma pessoa intrigante. Sempre. E é com essas pessoas que vamos conversar aqui. Começando pelo Boram Um, da Um Coffee Co.  

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Tem uma revolução acontecendo. Vemos que o interesse por nossas cervejas aumentou. E o que costura essa revolução é a proximidade entre consumidor e produtor e também o produto – um produto de qualidade, feito por gente apaixonada pelo produto. 

Boram: Essa conversa faz total sentido. Estamos em mercados que convergem na qualidade e na paixão pelo produto. E, como na cerveja, também no café temos a briga com as grandes marcas, que agora querem pegar carona no mercado de especiais. 

Queria saber sua história. Como vocês se meteram no mundo do café?

Boram: Meu pai trabalhava com comércio exterior, baseado em Varginha, que é um grande polo de comercialização de café. Foi assim que a gente começou a se meter nessa história. Meu pai começou a exportar café e foi se apaixonando. Mas como a gente era intermediário, não tinha rastreabilidade do produto ou controle sobre a cadeia. Então muitas vezes a gente tinha problemas de qualidade. Ele estava procurando um projeto de aposentadoria e eu estava na faculdade. Um dia ele me avisou: vou comprar uma fazenda e a gente vai produzir café.

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E você tomava café?

Boram: Naquela altura, só pra ficar acordado e estudar. Morava em Boston, ia no Starbucks e pedia aquele copão de café americano para ficar acordado. Em 2011, abriu uma cafeteria diferente  no campus da faculdade, que antes só tinha lugares tipo Starbucks. Essa cafeteriazinha chamava espresso gourmet. E tudo nela era diferente, até o cheiro. Como meu pai ficava falando de café, um dia resolvi entrar e ver do que se tratava. De cara tinha um mural enorme com os países produtores. Uma história de "olha de onde vem o café, olha as origens diferentes que existem". Foi lá que provei o café que foi um marco nessa descoberta.

Você já tinha visão sensorial? 

Boram: Cara... não tinha.

Quando resolvi experimentar mesmo café fui a uma cafeteria bacana aqui em São Paulo. Cheguei e vi aquele monte de café… Fiquei confuso. A pessoa que atendia perguntou o que eu queria. Respondi que gostava de café amargo e tomei bronca. Você deu essa mancada também? 

Boram: Completamente! O barista chegou e me perguntou: o que você gosta de tomar? Eu falei: "em casa tomo Nespresso, aquele café mais encorpado". Nos Estados Unidos, a abordagem é mais comercial, eles não são elitistas em relação a consumo. Não tomei bronca, ele falou: "Bacana. A gente tem alguns cafés de torra mais escura, porque o consumidor americano prefere. Mas tenho um café que vai surpreender você. É um café da Etiópia, com notas muito delicadas, um café diferente, com uma acidez mais brilhante". Foi a primeira vez que ouvi falar em acidez e nota sensorial no café. Foi muito surpreendente. Tinha notas de jasmim e laranja, que é o perfil padrão da Etiópia. E essas notas sensoriais eram muito nítidas. A partir desse dia eu não conseguia parar de ir lá.

O cara converteu você. É um grande desafio. Quais os desafios de trazer público novo para o café?

Boram: O paralelo principal com a cerveja é que a gente tem o mesmo objetivo: converter a grande maioria do público para um produto melhor. A gente quer mostrar pra maioria que ela pode ter uma experiência bacana com um café. 

O café tem uma coisa interessante: é o cliente que prepara o café na casa dele. Tem a história do ritual. Ele pode ter o  melhor café do mundo e estragar tudo. Com a cerveja é mais simples: a gente manda a lata e só pede pro cliente manter refrigerado. No caso do café, o cliente assume uma parte do processo. Você acha que isso afasta as pessoas?

Boram: Não. Vejo isso como ponto positivo. O café é democrático. Tem o cara que não está  interessado na técnica. Ele quer o conforto. E tem o coffee geek que vai comprar todos os acessórios e trocar muita idéia com o barista, fazendo mil perguntas. Vira e mexe tem cliente que chega e fala: comprei o café e não consigo fazer igual ao da cafeteria, me ajuda? Faz parte de uma experiência bacana para quem tem essa curiosidade. Agora, tem também muito cliente que compra todo mês e consome do jeito que sempre consumiu em casa e fica feliz. A gente tem essa amplitude. 

Desculpa, acho que embarcamos aqui no assunto e esquecemos da história de como tudo começou. Vamos voltar?

Boram: Bom, a fazenda começou a produzir e meu pai falou: "Olha, Boram, agora que comprei a fazenda e comecei a produzir, preciso da sua ajuda vender nosso café!" A exportação de café verde funciona muito no modelo de atravessadores, cooperativas e exportadores. Mas desde 2011/12, há uma movimentação de torrefações e cafeterias buscando uma ligação mais direta com o produtor. Tem muitas torrefações indo visitar fazendas, conhecer a origem, ter um entendimento do que o produtor está fazendo em termos de pós-colheita, como está a safra. Isso é muito importante nos produtos com 100% de rastreabilidade. Em 2014/15, comecei a fazer algumas viagens para entender o mercado de café especial e foi uma experiência muito gritante. O Brasil sempre o patinho feio em termos de produção de café de qualidade. As estrelas são Colômbia, Guatemala, Panamá. E obviamente os países onde o grão se originou: Etiópia e Quênia. Então as pessoas fechavam a cara para mim e diziam: "Desde quando o brasil produz café especial?" Em 2015, tirei minha certificação de Q-Grader, que é uma formação de sommelier para café e que serve principalmente para avaliar e pontuar nossos lotes de café.

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Avaliar os seus próprios lotes?

Boram: Sim. É importante o produtor conhecer seu produto, provar o café e saber qual a pontuação do café que ele produz todos os anos. A certificação Q-Grader é importante pra gente conhecer nosso café, entender nosso trabalho na lavoura e como isso reflete na qualidade. Com isso a gente foi ganhando mercado, principalmente na Europa. Um marco foi entrar no The Barn, considerada a melhor micro torrefação de cafés na Europa. Aí o pessoal começou abrir a mente para cafés especiais brasileiros

E por que decidiu abrir cafeteria?

Boram: O que inspirou a gente a começar a trabalhar com torrefação local no Brasil e abrir as cafeterias foi esse choque ver que o Brasil não tinha reputação de café de qualidade. A gente sabia que o consumo do café de qualidade no Brasil era quase inexistente. Nessa época tinha Santo Grão, Coffee Lab, Suplicy… 

Mas separa isso pra gente? Isso é uma coisa que dá muita confusão. Para o leigo ou quem está começando, é difícil ver a diferença entre as diferentes cafeterias.

Boram: Ah, quando a gente fala de café de altíssima qualidade com produto rastreado com lotes pontuados, era só o Coffee Lab mesmo. E o que virou a chave pra gente foi isso: se nem a gente, que é brasileiro, consegue valorizar o produto, como vou chegar lá fora e ficar martelando que o produto é bom? Então a gente abriu a torrefação e a cafeteria. Os compradores de café, que são as torrefações e os importadores, viajam para as fazendas na época da safra. A cafeteria virou ponto de parada deles em São Paulo. E os caras vinham e ficavam chocados: "Nunca provei café assim do Brasil! Acho que to indo pras fazendas erradas!" A gente ganhou muitos clientes por meio da cafeteria. E conseguiu trazer uma evolução pro mercado interno. Hoje me vejo como um embaixador do café brasileiro. Entrei nas competições internacionais de barista para colocar o café brasileiro no circuito e liderar esse mundo da qualidade. E a gente vê o Brasil dominando cada vez mais a produção de cafés especiais. Temos um avanço excelente do consumo de café de qualidade: ele cresce 17%, 18% por ano. Mas a gente é bem pequeno ainda, de 5 a 7% do mercado.

A gente tem uma cultura de café, mas não de café de qualidade. Isso faz que seja mais difícil converter?

Boram: Sim. A gente tem uma cultura muito forte de não pagar pelo café. O café é cortesia do restaurante. Você vai ali na garrafa térmica, pega o copo de plástico e toma seu cafezinho de graça. É um desafio muito grande! E tem também o orgulho do café forte brasileiro, amargo e sem complexidade sensorial. Um pouco desse orgulho precisa ser quebrado. O consumidor precisa ser educado e geralmente é um choque muito grande. A gente dá muito curso, já há quase sete anos. E toda vez é uma grande descoberta para muitos consumidores! Eles começam a entender porque o produto que eles compram no supermercado já vem torrado e moído e tem cheiro de queimado enquanto o café que é produzido em cafeterias especiais é mais doce. É uma grande quebra. 

Em países com uma cultura de café mais avançada, como Austrália, tem uma coisa de a pessoa não fazer café em casa, não é?

Boram: Exato. Tirando os Estados Unidos, onde as pessoas tomam café em casa, na rua, no posto, no escritório, em todo e qualquer lugar, a regra nos países consumidores de café de alta qualidade é tomar café na cafeteria. Na Europa, na Austrália e na Ásia, o pessoal não tem essa cultura de consumir café em casa porque o café em si é uma atividade muito social para eles. A ideia é encontrar amigos. E eles preferem que o café seja preparado por um barista, com os equipamentos adequados. Numa linha: "Nunca vou conseguir fazer isso em casa, é mais fácil ir a uma cafeteria".

Na cerveja a gente tá vivendo uma revolução de produto tão grande, que eu brinco que daqui a 30 anos a gente vai beber uma cerveja totalmente diferente. Qual sua visão de onde a gente está e para onde vai o mundo do café?

Boram: Concordo completamente. A gente está só no começo. As possibilidades são infinitas. De cinco anos pra cá, baristas e torrefações passaram a desenvolver, com os produtores, métodos de fermentação pós-colheita. Fermentação de café era um tabu, era o fim da qualidade do lote. Mas houve um aprendizado. O processo de fermentação pode aumentar muito a complexidade dos café, inclusive trazendo notas sensoriais novas. Os métodos de fermentação avançaram muito na América Central porque produtores trouxeram enólogos para trabalhar com o café.

O Brasil está conectado com o que está rolando no mundo?

Boram: Em termos de pesquisa sobre processos de fermentação, estamos avançados. O Instituto Federal do Espírito Santo está há uns cinco anos trabalhando com pesquisa e identificando a microbiota e microbiologia de diferentes regiões. Mas ainda não achamos a receita correta. Não estamos no ponto de dizer na região tal, a fermentação deve ser feita assim ou assado. E ainda temos o desafio da produção de grãos de qualidade. O Brasil sempre foi muito avançado no desenvolvimento de espécies para alta produtividade e bastante resistência a pragas. Mas ainda estamos buscando quais são as variedades mais interessantes para qualidade.

Quando a gente foi começar a produzir, em 2016, sentimos que havia uma lacuna de conhecimento. Muita gente não estava acompanhando o que estava acontecendo no mundo. Então para nós teve uma  história de quebrar o código do produto. Dá pra chegar? Não dá? E quando deu, vimos que não tinha barreiras. Quando seu pai começou, como era essa busca por conhecimento?

Boram: A gente já chegou plantando errado! A primeira lavoura que a gente plantou tem espaçamento para passar trator, porque a lógica era plantar já pensando em mecanizar. Até hoje a gente nunca mecanizou nenhuma parte da lavoura. Foi um desafio reunir o conhecimento. Eu viajei para países produtores e passei uma temporada na Colômbia. Fomos aprendendo e adaptando. Na Colômbia, o pessoal trabalha com terreiros suspensos para secar o café. Aqui a gente punha o café todo no chão para secar. Será mesmo uma boa ideia? Num terreiro suspenso a secagem é mais homogênea, passa ar embaixo e em cima. Vamos começar a montar uns terreiros suspensos aqui? E aí para explicar para o serralheiro… a gente não sabia fazer. Hoje, quando tem visita na fazenda, as pessoas olham os terreiros e falam: "Nossa, mas por que que tem tantos modelos diferentes de terreiros suspensos?" Respondo: "Isso foi a evolução anual… A gente fazia um e via que dava para melhorar aqui e ali e atualizava o projeto do próximo". O pessoal achava que a gente era tudo maluco. "Esses coreanos estão plantando e colhendo o café de forma estranha,  montaram um monte de terreiro estranho…" Fomos dos primeiros produtores a trabalhar com o pós-colheita muito focado em qualidade. Hoje todos os nossos vizinhos têm terreiros suspensos e trabalham com cafés de qualidade. Então a gente entendeu que estava no caminho certo.

Não existia consultor?

Boram: Não. Foi muito erro e acerto. Ainda é. No ano passado fiz mais de 60 experimentações de fermentação na fazenda e só 5 vingaram. Meu pai fica de cabelo em pé! O processo de aprendizado foi doloroso, mas hoje a gente já tem um conhecimento suficiente para produzir os mesmos lotes de forma consistente para muitos dos cafés. Se a gente não tivesse passado por essas dores a gente não teria reunido esse conhecimento.

Quem atesta a qualidade do café? 

Boram: Existe uma metodologia global em termos de controle de qualidade. A certificação Q-Grader é rigorosa, você precisa renovar a cada 3 anos, em uma prova intensa e difícil. Eles trazem um juiz de prova e cafés que você nunca experimentou na vida. Todo mundo prova na mesma mesa e pontua tudo junto. Quando a gente está avaliando o café, todos os Q-Graders vão avaliar da mesma maneira, numa conversa bem padronizada e apropriada. É um sistema que funciona bem porque você comercializa o café com base na pontuação. Hoje, nossa equipe tem 3 Q-Graders, incluindo eu. A pontuação é produzida sempre com 3 avaliadores. 

E como você faz para se manter atualizado?

Boram: Como sou representante do Brasil em campeonatos de barismo, tenho muito acesso a outros competidores do mundo. As competições internacionais são uma boa forma de acompanhar as tendências. Os finalistas são as pessoas que estão trazendo novidades, de café, acessórios, fazenda, técnica de pós-colheita. É esperado de um barista de classe mundial que ele tenha contato direto com produtores, entenda de métodos de pós-colheita e torra, de equipamento e, claro, tenha conhecimento bem avançado de extração. Então há muita troca de conhecimento.


Nos concursos de cerveja a lógica é a do cara-crachá: os caras ficam vendo quanto a cerveja é fiel ao estilo. Inovação não é algo bem vindo. Pelo que eu entendi, você está dizendo que o melhor café do mundo vai ganhar o prêmio de melhor café do mundo. E na cerveja, vai ser uma tripel que está dentro do estilo. E não necessariamente a melhor cerveja do mundo. 

Boram: No café, há dois tipos de competição: de produção e de barismo. Existem competições nacionais e globais de qualidade do produto. Existem categorias, mas não limitações em termos de perfil sensorial. Já as competições de barismo envolvem não só o café, mas a questão do serviço. Então nem sempre o melhor café vai ganhar. Mas, geralmente, como o café é a matéria prima principal, os baristas que vencem trabalham com os melhores cafés do mundo.

É tipo piloto de Fórmula 1, tem o piloto e tem o carro...

Boram: Exatamente! O barista está lá para conduzir, naqueles 15 minutos, uma extração de café e uma experiência. Rola muito patrocínio de equipamento. Tem as fazendas que são as mais concorridas. Essas fazendas escolhem os competidores para quem eles vão enviar os melhores lotes de café. Os cafés de competição começaram a atingir preços surreais. Em 2019, o pessoal do Elida State, no Panamá, vendeu uma saca de café por US$ 380 mil!

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Como você vê o futuro da Um Coffee Co.? Onde vocês querem chegar.

Boram: A gente entende que tem um trabalho de longo prazo, essa transição para o café de qualidade. Mas o Brasil tem um desafio extra que é se tornar cada vez mais relevante no mundo dos cafés de qualidade. Então, apesar de o brasileiro ter essa percepção de que o café do Brasil é o melhor porque é exportado para o mundo inteiro, isso nunca se deu por qualidade. Então o desafio é emplacar o Brasil como produtor de café de qualidade. É por isso que estou no meio das competições: para mostrar que o Brasil está aqui para ser o líder em termos de cafés especiais e trabalhar o consumidor de forma devagar mesmo. Com as cafeterias, com a torrefação, sendo verdadeiro com o produto. O desafio é trazer essa surpresa boa pro consumidor final.

Daniel BekeiermanComentário